Olá pessoal!
Estreiando aqui no blog, disponibilizo um texto bem interessante sobre Dymphne, a Santa protetora dos loucos.
Esse texto é um breve resumo sobre o livro DYMPHNE - A SANTA PROTETORA DOS LOUCOS, de 2000, do autor e psicólogo Ézio Flavio Bazzo, escritor brasileiro, pouco conhecido, com um bom toque de humor ácido, que o cotidiano merece.
Abraços,
Carolina
Psicóloga
[Meus pesadelos mais terríveis são aqueles onde me vejo refletido num espelho - com uma máscara no rosto]
J.L.Borges
A comunidade psicoterapêutica de Geel, situada a uns quarenta quilômetros de Antwerpen, na Bélgica, e em funcionamento desde o século XII, é conhecida tanto como o "paraíso dos loucos" como a "cidade misericordiosa", cuja padroeira é a santa Dymphne, aquela que e que conforta os "insensatos". Atualmente com seus trinta mil habitantes, Geel é a mais antiga colônia familiar que se tem notícia, dedicada ao acolhimento e tratamento de doentes mentais. Apesar de hoje não se encontrar, aqui quase nenhum vestígio virtual daquela época, época em que os "loucos" vinham em peregrinação de todos os lados, em carroças ou a pé, acorrentados ou soltos, aos gritos ou em total mutismo, quase sempre "enfeitiçados" ou "possuídos pelo demônio", etc., o sistema de acolhimento, de relacionamento e de tratamento, apesar de modernizado e institucionalizado, ainda conserva a mesma filosofia daqueles tempos. Aqui os doentes mentais ao invés de confinados em instituições fechadas, ficam alojados em casas de familias no interior da própria comunidade. Como norma, esse internamento familiar é temporário, mas tornou-se comum os pacientes acabarem vivendo por aqui para sempre. Considerado até pouco tempo atrás como o único local do mundo, onde os pacientes dispunham de um internamento familiar, o sistema de Geel tem ultimamente servido como modelo para aqueles países que lutam para oferecer condições mais "humanas" e mais "dignas" às pessoas que sofrem de algum tipo de transtôrno mental.
A lenda de Dymphne, surgiu por primeira vez em latim, em um documento datado em 1247. Cheia de significados incestuosos, edipianos e místicos, a lenda parece não ter ainda sido explorada como era de se esperar. Dymphne, filha de um rei irlandes, viveu no final do século VII. Apesar de seu pai ser pagão, ela, através da mãe, foi batizada e educada na fé cristã. Após a morte da esposa, decidido a encontrar uma mulher tão linda como ela, mas não encontrando em seu reino ninguém que o satisfaça, o rei resolve casar-se com a própria filha. Quando Dymphne toma conhecimento do desejo incestuoso do pai, fica escandalizada e foge para a Bélgica juntamente com um padre de nome Gerebernus (o mesmo que a havia batizado), o violinista do reino e a esposa deste. Chegando a Antwerpem, por precaução, vão refugiar-se no campo, numa cabana que eles próprios constroem, próximos ao vilarejo de Geel, local onde mais tarde é descoberta e decapitada pelo pai.. Seu corpo foi enterrado ali mesmo, próximo a uma capela dedicada a São Martin. Mais tarde quando os nativos desenterraram seu corpo para transferí-lo para a igreja, perceberam que os ossos estavam protegidos e recobertos por um material desconhecido na região. Da conclusão de que Dymphne havia sido enterrada ou pelo menos protegida pelos anjos, advém tanto a necessidade de considerá-la Santa como a de invocar sua proteção, principalmente contra as doenças mentais, já que ela havia sido vítima do , seu pai. A partir de então, começam a chegar peregrinos de todos os lados para suplicar cura à Santa Dymphne. Os doentes chegavam a Geel e eram conduzidos a um pequeno barracão construído ao lado da igreja, conhecido por quarto dos doentes ou Liber Innocentium onde permaneciam por nove dias, sob "tratamento": penitências, rezas, expiações religiosas, exorcismos. etc,. Terminada a novena, independente do doente estar ou não, ele voltava para sua família ou permanecia alojado, albergado ou internado junto às famílias e aos próprios moradores da vila. Em muitos casos, os pacientes passaram a viver definitivamente em Geel, criando assim, de maneira espontânea, uma alternativa para os então tenebrosos tratamentos que eram aplicados aos enfermos da mente. Pela dedicação e compreensão que Geel, sob forte influência e domínio religioso dispensa aos doentes mentais, passa a ser considerada a "cidade misericordiosa", e inaugura assim o que hoje se conhece por tratamento familiar terapêutico, uma maneira interessante e eticamente digna de se lidar com a controvertida questão da "loucura". E é importante notar que o sistema psiquiátrico implantado em Geel naquele tempo, antecedeu, e em muito, a revolução psiquiátrica levada a cabo mais tarde, pelo Dr. Pinel, na Salpêtriere. É evidente que a realidade de Geel deve tê-lo influenciado.
Podem ser internados em Geel pacientes de toda a Bélgica, uma vez que as normas básicas exigidas pela comunidade sejam atendidas. Vejamos os passos principais para o acolhimento de um doente:
(a) A admissão dos pacientes: As instituições que desejam fazer o encaminhamento, devem antes avaliar se o comportamento social do candidato é conciliável com as normas de tolerância da comunidade local; as questões de seguro/saúde do paciente devem estar em dia, para que questões financeiras não venham interferir na importante integração do doente com a família que o aloja. Ao chegar no Hospital Central, o paciente passa por uma seleção e por um contrôle rigoroso antes de ser encaminhado para o internamento familiar. Os relatórios enviados pelo hospital psiquiátrico ou pelas instituições que estão encaminhando o paciente a Geel, relativos à situação psicológica, médica e comportamental do doente, constituem o ponto de partida da seleção. Quando isto não é suficiente, o paciente fica sob a observação do "Comitê de Internamento", composto por médicos, sociólogos, psicólogos e psiquiátras. Após a indicação favorável ao internamento familiar, é ouvido o paciente e seus familiares. Em seguida o paciente e a família que o alojará são apresentados, entram em acordo e o internamento é imediatamente efetuado. Quando necessário, é colocado em prática um processo de integração.
(b) As famílias que alojam os doentes:As famílias que se propõem a alojar um ou mais doentes mentais em suas casas são famílias comuns da região e das origens sociais mais variadas. Frequentemente são pessoas acostumadas, desde a sua infância, a visitar ou até mesmo a conviver com pessoas portadoras de algúm tipo de doença mental, e que não vêem nenhum tipo de impedimento nem de risco nesse tipo de convivência. São famílias que normalmente dispõem de um quarto para alugar, que necessitam complementar sua renda financeira ou mesmo que estão dispostas a tornar menos monótono o seu cotidiano. Depois de candidatar-se junto ao hospital, a família passa por uma entrevista onde vai se verificar a localização e as condições de sua casa, o seu comportamento social, a presença ou não de eventuais doenças transmissíveis, sua vida familiar, etc.
(c) Como é feito o atendimento:O município de Geel é dividido em 15 bairros e cada um deles é atendido por equipes específicas, que se deslocam diariamente em transporte particular ou coletivo para supervisionar e dar assistência aos 800 pacientes que vivem distribuídos por todos os bairros. A esta supervisão feita pelo médico e pelo enfermeiro cabe fundamentalmente observar o modo de coabitação do doente no seio da família bem como seu estado de saúde, tanto física como mental. Os medicamentos necessários são fornecidos pela instituição central, bem como quaisquer outras formas de terapias que sejam recomendadas, tais como: terapia da motricidade, kinésiterapia, logopedia, ergoterapia e terapia criativa. Também podem ser recomendadas psicoterapias, em grupo ou individuais, que podem ser ministradas no hospital central ou em uma das casas do bairro. Os pacientes podem solicitar assistência ao hospital central durante as 24 horas do dia, tanto para uma simples consulta como para um internamento de urgência. Enfim: ações integradas, uma política e uma filosofia de saúde parecem, por si só, facilitar o e, como escreveu Pierre Morel, fazer com que o destino trágico da pobre Dymphne não tenha sido em vão.
Para nós, no Brasil, que ainda não conseguimos nos livrar completamente de nossos manicômios medievais, é impossível conhecer a comunidade terapêutica de Geel sem sentir por ela um imenso respeito. E ela pode até nem ser o e muito menos a , como a denominaram durante centenas de anos, mas é, sem sombra de dúvidas, um modelo de atendimento público em saúde mental digno de qualquer país verdadeiramente civilizado.
(Publicado em 1999, no jornal da Universidade de Brasília)